Leia a história do Socorrão 2 e conheça o que é ser Lean
Priscila Marques, médica coordenadora do NIR, descreve toda trajetória e sentimento da equipe com o Projeto Lean nas Emergências

Está curioso para saber como é ser Lean?
Leia a história do Socorrão 2 escrita por Priscila Marques, médica coordenadora do NIR, compartilhando os sentimentos da equipe durante a intervenção do Projeto Lean.
Em 2013, o Hospital Clementino Moura, mais carinhosamente conhecido como Socorrão 2, foi contemplado com o Programa SOS Emergência/Proadi-SUS. O que ajudou muito no seu processo de conhecimento sobre gestão e rede e também ajudou o hospital a ter um olhar mais amadurecido sobre seus dados e a fazer o melhor uso deles. Inicialmente, pareciam mudanças difíceis, intangíveis e que fossem influenciar pouco dentro do cenário de sua realidade precária. Porém, o hospital foi conhecendo seus processos de trabalho, foi destrinchando seus tão empoeirados dados (quando eles existiam), criando Naqh, NIR e NSP, foi aprendendo sobre fluxos… Enfim, começava a se despir e a se compreender.
Mas, faltava algo. Havia muita vontade de mudar mais, melhorar o atendimento ao paciente e, quem sabe, tirá-lo do corredor. Às vezes, até conseguia, mas sem a solidez necessária para sua manutenção. O que faltava? Onde estava errando? Enquanto todos diziam que tudo era graças a falta de leitos, o hospital já tinha maturidade para compreender que não, esse não era o problema. E os pessimistas brotavam: “Socorrão 2 sempre foi assim e não vai mudar! Deixem de sonhar com o impossível!”.
Mas algo em seu coração dizia que sim, que o hospital podia ser melhor, sim! Podia ser como sonhava. Por que, não?! E, com a teimosia que lhe é característica, seguia fazendo “ouvido de mercador” às más línguas. Porém, chegou um momento em que, realmente, não sabia mais o que fazer para reduzir essa superlotação. Qual caminho seguir agora? Seria a hora de desistir e dar razão aos pessimistas?
E, já quase sem aquele sopro de esperança, eis que, em 2018, o hospital recebeu o “sim” que mudaria a sua história: o Projeto Lean nas Emergências, do Sírio Libanês.
Sim, o Socorrão 2 iria participar do programa que tem reduzido a superlotação de alguns Prontos-Socorros do Brasil. E, finalmente, poderia sonhar com seus corredores definitivamente vazios. Seria isso possível? Será que a oportunidade do hospital chegou? Naquele momento, misturavam-se sentimentos de euforia e esperança com dúvidas e inseguranças. Mas decidiu seguir em frente. Não, o Hospital Socorrão 2 não costuma desistir. E seguiu com a cabeça erguida, com o mesmo sentimento de uma criança pobre, que mesmo com a farda rasgada, tem a imensa alegria de poder ir à escola e aprender igualmente como as outras de farda nova e limpa.
Enfim, chegou o grande dia da visita do rico Sírio-Libanês ao pobre Socorrão2. Será que vamos passar vergonha? Será que foi muita ousadia se inscrever? O hospital e sua “síndrome do cachorro que apanha”, como diria um grande amigo. E foram esperadas pessoas com muita pompa, várias críticas e talvez um até “sinto muito, mas vocês não vão conseguir”, afinal, era o pessoal do impecável Sírio-Libanês diante do caos e da pobreza do Socorrão 2. Mas, ao contrário do que imaginava, o hospital recebeu um olhar afável e acolhedor de quem, finalmente, compreendia sua linguagem. E veio o primeiro simples elogio: ”Que legal! Já conhecem o Kanban!”. Enfim, não falava mais grego, na verdade, japonês sozinho!
Mas aquele olhar de fora também parecia não compreender como aquele pobre hospital podia ter tanta gente que o amava.
E a saga começou! Voa-se para São Paulo com toda vontade de aprender na mala e a esperança de que dias melhores viriam. E lá se compreendeu que nada seria fácil, mas que também não seria impossível. Ah! Socorrão 2 e sua famosa persistência. Ao voltar de lá, já se sabia da grande dificuldade que iria enfrentar, mas não se imaginava o quão ela seria realmente. E foi difícil. Muito difícil! Era calcular NEDOCS para lá, calcular LOS com e sem internação para cá… e tudo para entregar no prazo de “o mais rápido possível”. Mas como isso? Nem conhecemos essas fórmulas! Não tem um sistema que calcule?! Como atingir as equipes da noite, do fim de semana?! Assim em cima da hora!?
Parecia uma missão impossível em um hospital cuja falha de comunicação sempre foi um grande gargalo. Mas e aí? Vai desistir assim logo no começo? “Não! Vamos contar! Mesmo que seja um por um, duas vezes ao dia”. Afinal, o Socorrão2 não desiste, não é mesmo?! E começou a contar a quantidade de pacientes no PS, cabeça a cabeça. Às 10h e 16h, deixava-se tudo que tinha que fazer para iniciar o calvário da contagem e alimentar as planilhas. E foi dando certo! Com as orientações da equipe do Sírio aos líderes do projeto, todos tinham um direcionamento e iam fazendo sua parte. Os dados eram compilados, planilhas eram alimentadas e o hospital ía conhecendo seus novos números. NEDOCS de 1734, 880, 1375, quando o ideal é 150. Que calamidade. Estava sempre no preto!
Também chegou a hora de arrumar a casa, tirar tudo o que era desnecessário, reaproveitar, limpar, organizar, enxugar. Chegou a vez do 5S: Seiri (classificação), Seiton (ordem), Seiso (limpeza), Seiketsu (padronização), Shitsuke (disciplina). E o hospital pôde enxergar mais ainda o quão desorganizado estava. Era como um míope pondo óculos e percebendo quanta coisa estava ali, mas que já não enxergava mais. Enquanto isso, segue o cálculo do NEDOCS. Opa! Baixou para 386. Seguem os trabalhos e a esperança de dias melhores!
E essa UTI parada?! Como pode? Vamos levar a Vermelha para lá. O hospital precisa tanto de mais leitos de UTI quanto de uma enfermaria para ser retaguarda do PS. Corre-se atrás do cadastramento desses leitos. E, enfim, ele acontece. Afinal, Socorrão 2 não desiste mesmo, né?! Agora tem mais oito leitos de UTI e uma enfermaria prontinha para receber os pacientes do PS que ficariam menos tempo no hospital, a UCP (Unidade de Curta Permanência).
Hora de fazer o Mapa de Fluxo de Valor. A partir daí, contabilizou-se que o paciente ficava mais tempo a espera de reavaliação, de exames, parecer, a espera de um leito, etc. do que verdadeiramente sendo assistido pela equipe médica ou de enfermagem. E o Diagrama Espaguete? Planta impressa, percurso do paciente no P.S tracejado no papel e… Nossa! O paciente anda tanto! Como melhorar essas situações? Quem sabe um local onde o paciente fique e o profissional que vá lá reavalia-lo? Local onde os exames laboratoriais sejam coletados e entregues mais rapidamente e o parecerista encontre mais facilmente o paciente. “Que tal criar a Sala de Decisão Médica?”. “Ótimo!” E começam os esforços para que a sala acontecesse. Enquanto isso, o LOS sem internação e com internação iam reduzindo…
“Gente, e o NEDOCS?”. “Subiu de novo para 2.103”. Tristeza! Talvez não consiga sair desse patamar. Deve ser impossível atingir esses 150. Mas, embora muito desgastado, o Socorrão 2 não desistiu.
Sala de Decisão Médica pronta e todos pacientes devidamente alocados em poltronas e nas questionáveis macas (afinal, essa é nossa realidade) e pacientes internados também já na UCP. Era 30/01/2019. O hospital jamais vai esquecer essa data. Finalmente os corredores vazios; e, naquele dia, admirando os corredores vazios, as equipes entreolhavam-se e em cada olhar a alegria de estar vivendo aquele momento único, mas também o medo de que tudo não passasse de um sonho. E se for um sonho, por favor, não nos acordem!
E o NEDOCS? Despenca para 165! Tão próximo de 150, porém logo sobe para 306. Mas não houve desânimo. Seguem os trabalhos. Quem faz 165, faz 150, a tão sonhada meta.
E o hospital foi apresentado a mais um plano, era o Plano de Capacidade Plena (PCP), a sinalização e a movimentação que todos terão que ter em uníssono em caso de superlotação do PS; afinal, o hospital precisava estar preparado para isso. Rotina, Nível 1, Nível 2, Nível 3 e Catástrofe! E lá vem os pessimistas: “Socorrão2 vai viver em catástrofe!”. Mal sabiam eles que o hospital já não ligava mais para esses comentários. Pelo contrário, alimentava-se deles para, posteriormente, ter a oportunidade de provar que consegue, sim!
Então, agora é escrever a rotina de todo hospital em vários níveis. “Nossa! Gente, dá tempo de desistir ainda? Não, né?! Afinal, já viu Socorrão2 desistir?” Escrito e aprovado, é hora de ativar o PCP. Catástrofe 11 vezes! Ninguém esperava que fosse fácil mesmo… “Alguém me fala do NEDOCS?”. “43, 50, 40”. “Jura? Calcula de novo!”. “43, 50, 40”. Não é possível! 40 é o melhor resultado de todos os hospitais que já participaram do Lean nas Emergências. O Socorrão 2 ultrapassou a meta e a média! Enfim, o hospital estava no verde. Quem poderia imaginar?
E a Grande Emergência?? Ah, a Grande Emergência! Era preciso organizá-la. Ficam pacientes graves e estáveis juntos. O ideal é ter a Sala Vermelha e separar os fluxos do paciente horizontal com o vertical para que cada um seja devidamente conduzido conforme sua criticidade. E a Sala Laranja ser sua retaguarda. Então, o hospital vai fazer! E assim foi. Com a inocência de que seria mais um problema resolvido, de repente, foi um outro problema criado. Era clínico atendendo trauma sozinho, laranja sempre lotada e sem capacidade para a demanda da Vermelha e, cada hora, chegando mais pacientes. Politraumas, clínicos graves… De onde está vindo essa demanda toda? SAMU confuso com o fluxo, equipe um tanto sobrecarregada e insatisfeita. Ah, Vermelha, criar-te foi um dos momentos mais angustiantes ao longo do Lean no Socorrão 2. Será que foi um erro? Não. Não foi um erro. Aos poucos foi- se encontrando o ponto certo do setor.
É claro que de lá para cá a luta é diária e contínua para a manutenção desses resultados. Um dia se comemora uma vitória, no outro a tristeza de uma derrota. Mas quem disse que seria fácil? Nada nunca foi fácil para o Socorrão 2. A diferença é que ele não costuma desistir! E segue o Huddle!
E foi assim que o agora amigo Sírio-Libanês, por meio do projeto Lean nas Emergências, ensinou ao Hospital Socorrão 2 como atender melhor seus pacientes e que corredor não é ponto de cuidado. Em contrapartida, e humildemente, o Socorrão2 ensina a todos que, para se ter o melhor resultado, não é preciso a melhor infraestrutura, mas sim a melhor entrega.
Priscila Marques, médica coordenadora do NIR do Hospital Municipal Dr. Clementino Moura, o Socorrão 2.